terça-feira, 22 de outubro de 2013

Escritores brasileiros explicaram em Frankfurt por que não querem que o Brasil seja o país da biografia "chapa-branca"

                                               Ruy Castro garante que, enquanto a lei não mudar, não volta a escrever uma biografia

Será culpa da perna mecânica de Roberto Carlos? Ruy Castro acha que sim. Os brasileiros e a polémica das biografias autorizadas

Quando o escritor brasileiro Ruy Castro, autor de Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova, de O Anjo Pornográfico (biografia de Nelson Rodrigues) ou de Carmen (sobre Carmen Miranda), escreveu Estrela Solitária - Um Brasileiro Chamado Garrincha não tinha pensado fazer um livro sobre o famoso jogador de futebol brasileiro.
"Inicialmente pensei num livro sobre alcoolismo", contou na Feira do Livro de Frankfurt, onde integra a comitiva de escritores convidados. Em 1992, Ruy Castro tinha deixado de beber há cinco anos e achou que precisava de fazer um livro em que o alcoolismo fosse o assunto principal. Mas, não sendo um ensaísta, não podia fazer um ensaio, tinha de contar uma história e para isso precisava de encontrar uma personagem.
Essa campanha é antidemocrática. Porque não querem talvez que se fale da perna mecânica de Roberto Carlos?
Ruy Castro, escritor brasileiro


"Queria uma personagem que não fosse um perdedor. Queria um vencedor que tivesse sido destruído pelo alcoolismo porque sabia que, entre 1958 e 1962, quando Garrincha ganhou duas Copas do Mundo para o Brasil praticamente sozinho, ele foi o brasileiro mais amado do país", explicou. Mas quando o livro saiu no Brasil, em 1995, gerou polémica e iniciou-se uma discussão que dura até hoje, sobre os problemas que autores e editores têm com os familiares dos biografados.

Biógrafos censurados

"Pelo facto de ter sido alcoólatra, de ter vivido durante anos com todas as fases do alcoolismo e de ter estudado o assunto, eu me sentia em condições de fazer perguntas que revelariam a evolução da doença", disse o biógrafo. A sua intenção era que se discutisse o alcoolismo num livro em que o personagem era "querido, admirado" e depois foi "desprezado nacionalmente por tudo o que a bebida fez com ele".
"Infelizmente", diz, não foi possível porque, uma semana antes do livro sair, Ruy Castro deu uma entrevista à televisão e, no dia seguinte, os advogados da família de Garrincha já estavam a telefonar para a editora a avisar que iam levantar-lhe um processo: "Diziam que estava caluniando a imagem de Garrincha e não tinha pedido autorização para fazer a biografia. Mas disseram também que podia haver acordo, se pagássemos um milhão de dólares. A editora disse que não tinha acordo, eles processaram, o livro foi retirado e ficou um ano impedido de ser reimpresso e vendido."

Mas na história da edição brasileira não foi só Ruy Castro que teve problemas destes. Vários escritores foram já obrigados a alterar conteúdos dos seus livros por decisão dos tribunais ou têm as obras proibidas. Laurentino Gomes, autor de 1822, lembrou numa outra sessão em Frankfurt, que isso aconteceu a Mary Del Priore, com A História de Dilermando de Assis, o assassino do escritor Euclides da Cunha; a Paulo César de Araújo e à biografia que fez do cantor Roberto Carlos - os exemplares foram proibidos e recolhidos das livrarias por decisão judicial - e a uma biografia do escritor João Guimarães Rosa, de autoria de Alaor Barbosa, que só foi publicada depois de uma batalha de cinco anos nos tribunais.

"O Brasil é hoje um dos raros casos de país democrático" que impõem "dificuldades ou mesmo censura" ao trabalho dos biógrafos, disse Laurentino Gomes, lembrando que a Constituição consagra o direito à liberdade de opinião e expressão mas o Código Civil brasileiro, no artigo 20, estabelece que "a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indemnização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais". Para o escritor, "esta situação ameaça transformar o Brasil no paraíso da biografia "chapa-branca", aquela que só é publicada mediante autorização prévia do próprio biografado ou dos seus familiares e representantes legais".

Campanha antidemocrática

Fazer uma biografia autorizada, explicou Ruy Castro, não significa telefonar para o Caetano Veloso, o Gilberto Gil ou o Chico Buarque e perguntar: "Você me autoriza a fazer a sua biografia?" "Significa que, se me autorizarem a fazer a biografia de um deles, vou levar cinco anos trabalhando, vou escrever e no fim vou submeter-lhes o livro, que eles lerão ou darão para os seus advogados lerem e vão cortar tudo que não lhes agradar. Isso é uma biografia autorizada. E um outro nome para isso é censura prévia. Se isso não for censura prévia, eu não sei português", insurgiu-se Ruy Castro em Frankfurt.

"Lamentável essa onda actual do Procure Saber encabeçada por Roberto Carlos e Paula Lavigne [ex-mulher de Caetano] e com a bênção do Caetano, do Gil e parece que do Chico também, do Djavan e do Milton Nascimento", disse o escritor, referindo-se ao movimento que se aliou à bancada evangélica do Congresso brasileiro que tenta impedir a aprovação de um projecto de lei que modifica o artigo 20 e diz que, se os biografados tiverem "notoriedade pública", não é preciso autorização dos visados nem da família.

"Essa campanha é antidemocrática. Porque não querem talvez que se fale da perna mecânica de Roberto Carlos?", acrescentou Ruy Castro que, enquanto a lei não mudar, não voltará a escrever uma biografia. "Esse movimento atinge não só o trabalho dos biógrafos mas também dos historiadores, dos documentaristas, dos pesquisadores, de toda uma produção intelectual brasileira."
Os escritores, em Frankfurt, discutiram o assunto com a ministra da Cultura brasileira. Ela ouviu os seus pontos de vista, embora concorde com os músicos quando eles dizem que, se os autores ganham dinheiro com as biografias e vendem milhares de exemplares, deviam reservar uma parte dos seus direitos de autor para os artistas. Ruy Castro ouviu e perguntou-lhe: "Então isso parece-me que representa o biógrafo pagar um dízimo ao biografado. Eu gostaria de saber se com o pagamento desse dízimo eu tenho a minha independência assegurada...".

Fonte: WWW.publico.pt-cultura-noticia 

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